Entre Gigantes
Alec Silva
Os
olhos castanhos fitaram o oponente. Foi um olhar analítico o suficiente para
deduzir os pontos fracos e fortes, altura, peso e força. A seguir se moveu
agilmente para o lado, desviando-se da clava que se chocou com o chão, levantando
poeira; aproveitou o impulso e empunhou a espada, roçando a sua ponta no solo
arenoso, e usando a arma como apoio. Recuperou-se imediatamente da manobra
evasiva e desferiu um golpe na coxa esquerda do adversário, forçando-o a curvar
o corpo. Outro movimento preciso e a lâmina atravessou a garganta do inimigo,
findando o confronto.
Enquanto
o gigante se debatia, tentando conter a hemorragia, e vomitava sangue, a
guerreira ergueu o olhar, agradecendo aos deuses pela vitória obtida. O metal
ainda reluzia e gotejava o líquido rubro e precioso de sua vítima. Ela andou
calmamente para perto de seu cavalo, a guarda um pouco desprotegida. Não havia
sido uma luta muito difícil, contudo lutar com gigantes sempre era cansativo,
pois lhe obrigava a manejar a Nykh com mais energia vital do que o comumente
exigido.
Aquele
princípio de manhã tinha o vento ameno e os ares estranhamente densos, típicos
de perigos iminentes.
A
viajante solitária pegou um trapo para limpar a espada quando um urro alto
cortou o ar, ecoando pelo desfiladeiro. Ela se virou para trás e viu uma
criatura de estatura descomunal sair das trevas de uma caverna, portando duas
foices enormes e de corte enferrujado ― nem por isso letais ―, ora ou outra
roçando a ponta de uma delas no chão, enquanto avançava em passos largos e
firmes, sem pressa.
O
novo oponente correu o olhar avermelhado para o parente morto, jazido numa poça
de sangue, resmungando. Voltou-se para a assassina, vociferando:
―
Como ousa matar meu irmão, meu único irmão? Pagará com o mesmo valor,
desgraçada!
A
guerreira arfou, afastando-se do cavalo. Não queria pô-lo em risco num combate.
E começava a se arrepender por ter resolvido aquele atalho.
―
Ele me atacou primeiro! ― gritou ela, ciente de que se justificar seria em vão.
― Apenas me defendi!
―
Dane-se! Ninguém fere um irmão de um nefilin e fica impune!
O
gigante bateu ambas as foices uma na outra, produzindo sons irritantes e
algumas míseras faíscas. Rangeu os dentes e urrou, encarando aquela humana de
cabelos loiros e ondulados, pele branca, em contraste com a armadura enegrecida
que usava, e aparência tão serena. Não acreditava que seu irmão tivesse
sucumbido sob a lâmina de alguém tão inferior quanto um ser humano ― e ainda
mais sendo uma fêmea! Era inaceitável para seu orgulho.
Ele
aumentou o ritmo de suas passadas bruscamente, jogando os braços para frente,
causando estragos no ponto em que a mulher estava há pouco. Não se deixou ser
vencido pelo mesmo truque que derrubara o irmão; girou o corpo rapidamente,
desferindo um tapa que acertou o ombro esquerdo da guerreira, lançando-a a
metros de distância.
A
queda fora violenta, fazendo a viajante gemer de dor. Tentou se levantar, mas
sentiu um peso insuportavelmente dolorido no ombro, voltando a cair. Ouvia os
passos calmos e potentes do nefilin se aproximando, os metais enferrujados se
chocando. Precisava pensar logo ou o seu destino seria ser estraçalhada por um
indivíduo da raça desprezível de gigantes de pele alva e ascendência humana e
demoníaca. Pelo menos tinha a poderosa Nykh em punho...
Quando
o inimigo colossal tentou lhe perfurar a cabeça, ela se desviou como pôde e
conseguiu decepar a mão direita do maldito, que praguejou e se afastou
instintivamente, contendo o sangramento que jorrava em grande abundância da
ferida recente.
A
mulher aproveitou a oportunidade, arrastando-se um pouco e se pondo em pé com
dificuldade, tendo a espada como auxílio. O ombro doía terrivelmente, alertando
sobre o deslocamento de algum osso ― ou vários deles. Não deveria ter ousado
repetir a mesma façanha num mesmo dia.
O
nefilin a atacou novamente, com a arma que ainda lhe restava, num movimento que
almejava a sua cabeça; o outro braço sangrava em abundância, espirrando para
todos os lados, molhando o solo e a sua adversária.
A
guerreira se abaixou um pouco, livrando-se de perder a cabeça, porém sentindo a
lâmina da arma fazer um movimento no ar. Tentou desferir um ataque no punho do
inimigo, sem obter êxito algum, quase caindo.
O
monstro chutou o ar, almejando o corpo da humana que tanto o humilhava. Não
obteve resultado positivo; apenas um ferimento mortal que lhe cortou os
ligamentos do joelho, obrigando-o a se curvar, quase engatilhar.
Reunindo
forças, mas contente com o golpe bem sucedido, a mulher o escalou, ficando
sobre suas costas, e cravou a lâmina da Nykh na nuca dele, introduzindo-a até
quase enterrar o cabo, atingindo o cérebro, derrotando-o. Nem teve pressa de
sair dali, afinal tanto movimento e tanta energia usada no combate haviam
piorado a situação de seu ombro; agora sentia todo o corpo dolorido,
incapacitado de se mover.
Permaneceu
sentada sobre o cadáver do oponente vencido por horas, suportando o sol
escaldante, o odor putrefato exalado pelo corpo morto devido ao calor, a sede,
a fome, o suor a arder as feridas... Não eram aquelas coisas que a venceriam.
Lembrou-se
dos anos de treinamento, em terras distantes, dos castigos sofridos para
aprender a ter disciplina. Não tivera aquilo que se conhecia como infância ou
adolescência, tudo em nome de motivos aos quais pouco se orgulhava. Havia
aprendido a arte de matar com grande destaque, de todas as formas, de espadas a
adagas, de paralisantes a venenos letais. Tornara-se uma assassina perfeita,
uma guerreira dotada de beleza e agilidade.
Quando
percebera que seria capaz de se mover, levantou-se, desenterrando a lâmina da
Nykh do crânio do cadáver; o suor escorria pelo rosto e pelo busto; na verdade,
todo o corpo estava molhado e pegajoso. O ombro ainda doía, contudo um bom
curandeiro logo daria jeito naquilo mediante uma quantia generosa. Poderia
cavalgar normalmente, desde que o cavalo fosse num trote sossegado.
Caminhou
até sua montaria, que se recostara sob uma sombra, aguardando a sua amazona.
Pegou o cantil e tomou um gole demorado; a seguir pegou um pano velho e limpou
a espada, usando um pouco de água e areia para ajudar a tirar os vestígios de
sangue e miolos. Quando a limpou, guardou-a na bainha presa às costas e montou
o animal, que já estava pronto para retornar a viagem.
O
restante da jornada fora tranquila.
Parara
apenas quando passara perto de um rio de águas cristalinas. Descera do cavalo e
despira-se, cuidando de manter algumas adagas e a espada perto da margem, ao
seu alcance. Lavou-se demoradamente, livrando-se do sangue e do suor, das
impurezas daquela manhã tão intensa. O ombro esquerdo estava inchado e com
coloração arroxeada, mas era um hematoma como tantos outros.
Vestiu-se
com uma túnica leve e esvoaçante, sentou-se numa enorme pedra marginal e comeu
algumas frutas, pães e bolos trazidos da última vila que estivera. Bebeu um
pouco de vinho diluído à água, sem pressa. Deu algumas frutas ao cavalo, que
pastava ali perto. Por fim, encheu os cantis.
Contemplou-se
no reflexo aquático: uma mulher ainda jovem, serena, com um olhar cheio de
brilho, contudo entristecido, lábios médios, que às vezes ostentava um sorriso
enigmático, e pele branca. Seria facilmente confundida com uma filha de algum
nobre ― talvez até com uma princesa ―, entretanto era uma forasteira, uma
andarilha em busca de justiça e vingança, uma bela assassina de cabelos
dourados.
Era,
para quem conhecia a sua reputação, a senhora da espada com lâmina forjada com
metal vindo do céu, sangue de dragões e lágrimas de elfos. Ou simplesmente
Vannora.
NOTA: Personagem inspirada em Verônica S. Freitas.